29 de setembro de 2022 Entrevistas

“Moradia digna não é moradia barata”

Confira a entrevista de Alvaro Lorenz, diretor global de sustentabilidade da Votorantim Cimentos, sobre questões relacionadas à moradia digna

 

Inadequação fundiária, falta de disponibilidade de crédito voltado para pessoas de baixa renda, adoção de métodos construtivos mais produtivos e baratos. Esses são alguns dos principais desafios existentes para superar o déficit habitacional no Brasil, conforme aponta o estudo Inovação aplicada a moradia digna, produzido pela Liga Ventures, com patrocínio da Votorantim Cimentos e Saint-Gobain.

Entre 2016 e 2019, houve um aumento e 1,3% do déficit habitacional no país – que passou de 5,657 milhões para 5,876 milhões, de acordo com dados da Fundação João Pinheiro. Em âmbito mundial, a falta de moradia digna também é uma questão preocupante. Até 2030, três bilhões de pessoas precisarão de acesso a uma residência adequada, segundo aponta a UN-HABITAT.

Para que se possa mudar esse cenário, não existe uma única solução, nem um único setor econômico ou empresa responsável. Trata-se de um desafio que deve ser inquietante a todos: das organizações relacionadas à construção civil e à infraestrutura básica até aquelas que lidam com o acesso a crédito e o aluguel social.

De acordo com Alvaro Lorenz, diretor global de sustentabilidade da Votorantim Cimentos, algumas ideias equivocadas sobre o tema também impactam na superação desse desafio, conforme ele aponta em entrevista concedida e presente no estudo. Confira!

LIGA INSIGHTS: Como surgiu o interesse da Votorantim Cimentos no tema da moradia digna?

ALVARO LORENZ: A Votorantim Cimentos tem uma preocupação genuína com as pessoas e esse valor está impregnado na organização. Uma das reflexões que fazemos é sobre como produzir e fazer as nossas relações comerciais a partir de uma lógica de desenvolvimento sustentável, sem comprometer a capacidade das gerações futuras. Queremos deixar um legado positivo e acreditamos que um dos caminhos tem a ver com o desafio do déficit habitacional.

Temos uma área batizada de “transformação social” que busca entender, por exemplo, como podemos ajudar a transformar essa realidade, sabendo que nós não somos a única solução do problema, mas certamente somos parte dessa problemática. Uma problemática que é muito ampla, que vai desde a questão do direito à propriedade e da regularização fundiária até a compra de um local, o financiamento, a infraestrutura, a construção e assim por diante.

Na sua opinião, quais são os principais desafios para superar o déficit habitacional?​

Acho que o primeiro deles é a questão fundiária. O Brasil tem muito problema de posse e isso deve ser encarado pelo país. O segundo é a disponibilidade de crédito. As famílias de baixa renda não conseguem ter financiamento e recursos para poder construir, então, essas pessoas são obrigadas a viver de aluguel com valores exorbitantes.

Hoje, não existe linha de crédito para esse público porque o risco de inadimplência é muito grande e isso também tem que ser encarado como um grande desafio. O terceiro é como vendemos os materiais com um preço social, mas sem que, com isso, seja incentivado um mercado paralelo. Sabemos que, infelizmente, tem gente que adquire material com preço subsidiado e revende com preço de mercado.

E com relação aos processos construtivos?

Acredito que um desafio é pensar em métodos construtivos mais baratos, unindo esforços de diferentes agentes para que não só o custo de aquisição de uma unidade habitacional seja mais barato, mas o custo da moradia em si. Eu trouxe um pouco dessa discussão para o pessoal interno e usei o exemplo da engenharia reversa. Como funciona no conceito tradicional: existe uma demanda, que é levada para o pessoal de engenharia, de design e/ou de construção; eles fazem um projeto e apresentam o custo para a execução.

Se eu fizer isso para a moradia popular, o custo de uma casa convencional de tijolo, argamassa e cimento é inviável. Terei um produto super bom, mas estarei fora do mercado porque as pessoas não vão conseguir pagar. Na engenharia reversa, é diferente: diante da mesma demanda, você vai considerar o preço que o público-alvo consegue pagar e a margem de retorno que a empresa precisa ter.

A partir disso, o pessoal de engenharia deve desenvolver um projeto que se encaixe nesse contexto. Quando você estabelece que a moradia precisa ter determinado custo e a primeira resposta é que não conseguimos fazer um produto nesse valor por meio do processo convencional, a conclusão é que teremos que criar uma solução diferente. E, aí, você reúne profissionais com perfis variados para pensar em alternativas.

Por isso, uma das frentes que trabalhamos na Votorantim Cimentos é a diversidade em todos os sentidos. Porque pessoas pensando igual vão gerar o mesmo tipo de solução, enquanto pessoas que pensam diferente vão ter uma provocação de conflito e, a partir disso, trarão ideias diferentes. E essas soluções de construção vêm junto com outro desafio, que é o da produtividade da mão de obra.

Como você avalia essa questão da mão de obra atualmente no Brasil?

O setor da construção civil gera muitos empregos, então, existe um apelo social. Porém, a produtividade é um problema hoje. Com isso, fica a pergunta: como endereçamos a questão de ter métodos construtivos que demandam menos mão de obra intensiva, ao mesmo tempo em que mantemos o emprego das pessoas? Para mim, quando falamos desse processo de moradia digna, precisamos também encaixar na equação a qualificação da mão de obra atual.

Hoje, temos um processo extremamente manual com dificuldade no controle de qualidade, que toma tempo e que, no final das contas, também acaba gerando um custo alto. Então, precisamos trazer para a equação uma solução que mude também esse cenário. Outro ponto a ser considerado é que temos muitas mulheres que acabam trabalhando na construção civil para complementar a renda. Por isso, é importante desenvolver um processo não só de qualificação, mas de integração e de inclusão dessas profissionais.

A Votorantim Cimentos já se envolveu em diferentes projetos relativos à moradia digna. Quais aprendizados essas experiências geraram?

O primeiro aprendizado é a confirmação, na prática, de que não temos a solução do problema. Temos a convicção de que é um problema que precisa ser endereçado e que, inclusive, pode ser uma oportunidade de negócio — além de ser um dever social. É uma cadeia de valor que existe, mas a questão é como conseguimos fazer com que ela seja mais integrada e mais justa ao longo do processo.

O segundo aprendizado é que nós precisamos ter outras empresas, startups e demais players que se disponham a pensar junto sobre o problema e sobre como endereçamos a solução. Por isso, participamos de diversas iniciativas com parceiros diferentes, como a Artemisia, a Caixa Econômica, a Escola da Cidade, a Gerdau e a Habitat Brasil. Quando discutimos com outros atores da cadeia de valor, percebemos lacunas e barreiras distintas.

A terceira é que não necessariamente essa solução de moradia digna tem que ser 100% com produtos que a Votorantim Cimentos fornece. Acho que perceber que, talvez, não tenhamos a solução ou a melhor oferta para partes desse método construtivo  pode ser um choque de realidade, mas também serve de incentivo. Como no exemplo da engenharia reversa, o exercício é entender qual solução cabe melhor para moradia digna e avaliar se consigo ser competitivo com meu portfólio de soluções atuais. Se a resposta for negativa, precisamos avaliar se queremos ser competitivos nesse mercado e o que devemos fazer para conseguir isso.

Quando tivermos essa solução, ela tem que endereçar o conceito de tudo aquilo que é e o que não é moradia digna, privilegiando a questão de ser acessível para as pessoas de baixa renda. E se, para isso, não usarmos todos os materiais da Votorantim Cimentos, paciência. O que importa é que desempenhamos um papel em alguma parte da solução desse desafio tão complexo e acho que isso vale a pena.

Nas suas palavras, o que é e o que não é “moradia digna”?

Para mim, o conceito de moradia digna não significa moradia barata que daqui cinco anos vai começar a aparecer trinca, ter infiltração e começar a cair. Em inglês, é utilizado o termo “affordable housing”, que traduz bem essa ideia de uma moradia com um custo que a pessoa consegue pagar, mas que tenha durabilidade e proporcione qualidade de vida ao longo do tempo. Moradia digna também não é só vender produtos a preço subsidiado. Acho que o preço social é importante, mas não é somente dar desconto e continuar com métodos construtivos de baixíssima qualidade.

Se fizéssemos uma análise, muitos locais onde as pessoas habitam hoje teriam que ser colocados literalmente no chão e fazer do zero. Moradia digna é entender que as pessoas têm esse sonho de como vai ser a sua casa e eu acho que esse sonho tem que ser sonhado com outras pessoas, outras instituições, outras associações para que seja possível torná-lo realidade.


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