29 de setembro de 2022 Entrevistas

“A construção tradicional não vai resolver o déficit habitacional no Brasil”

Em entrevista à Liga Ventures, Thiago Kaschny, gerente de produtos da Saint-Gobain, fala como a tecnologia pode auxiliar a garantir uma moradia digna para todos.

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Apesar de constar na Constituição Federal de 1988, o direito a moradias devidamente adequadas não é realidade para grande parte da população brasileira. Na verdade, ess cenário tem se tornado cada vez mais distante. De acordo com a Fundação João Pinheiro, entre 2016 e 2019 foi verificado um aumento de 1,3% do déficit habitacional no Brasil — o que não é pouco quando considerado que se tratam de números na casa dos milhões. 

Isso significa que a quantidade de novas casas que precisariam ser construídas por não serem adequadas para habitação passou de 5,657 milhões para 5,876 milhões. Quase 86% delas se encontram em área urbana, e o restante em regiões rurais.

Solucionar tal desafio, portanto, não é simples. Em entrevista concedida à Liga Ventures, Thiago Kaschny, gerente de produtos da Saint-Gobain, explica como sistemas industrializados e inovadores de construção poderiam ajudar a combater o déficit habitacional no Brasil, mas custos e dificuldade de homologação ainda são grandes empecilhos.

Leia a entrevista na íntegra abaixo e aprofunde o conhecimento sobre o tema no relatório Inovação aplicada a moradia digna, feito em parceria com a Saint-Gobain e a Votorantim Cimentos.

LIGA INSIGHTS: Como surgiu o interesse da Saint-Gobain no tema da moradia digna e do déficit habitacional?

THIAGO KASCHNY: A Saint-Gobain tem a missão de tornar o mundo um lugar melhor, de conseguir transformá-lo com soluções que ajudem as pessoas, independentemente de onde elas estiverem. Ou seja, tanto no ambiente residencial, melhorando o conforto térmico, acústico, a qualidade do ar daquele espaço, quanto no dia a dia de trabalho, trazendo soluções mais sustentáveis para dentro do grupo e para o mercado. Essas são mensagens muito fortes e ideias presentes na rotina da companhia. 

Quando pensamos no nosso propósito, “making the world a better home” [tornar o mundo melhor, na tradução livre], existe, obviamente, a questão do lar, do lugar em que moramos. Com isso, tratando-se de Brasil, não podemos deixar de pensar na habitação popular, no déficit habitacional existente no país, um número que cresce a cada ano.

Quais são as iniciativas da empresa voltadas para habitação de interesse social?

A Saint-Gobain possui um programa de aceleração interno com o propósito de fomentar a inovação na empresa. Uma das iniciativas criadas por colaboradores é um projeto de habitação temporária, que tem como objetivo apresentar soluções para o problema dos moradores de rua, pessoas em situação de rua e/ou de emergência. 

Em casos de eventos climáticos extremos, que têm se tornado cada vez mais frequentes, as pessoas ficam sem ter onde morar e geralmente são alocadas em abrigos temporários disponibilizados pelos municípios, como ginásios. A partir de pesquisas, entendemos que muitas dessas famílias não se sentem confortáveis em compartilhar esses espaços, por questões de privacidade, segurança e também porque não querem abandonar seus pertences. 

Pensando nessa dinâmica e em alguns cases que vimos fora do Brasil, surgiu a ideia de fazermos um projeto de habitação temporária para atender essas populações,  dando tempo e permitindo que elas possam se restabelecer. Por enquanto, o  programa ainda está em fase de validação. A ideia é desenvolver uma casa pré-fabricada, que seja de rápida instalação, testá-la e homologá-la. É importante destacar que a SG não leva nada para o mercado que não esteja de acordo com normas e referências nacionais e, muitas vezes, também internacionais.

Quais foram as principais lições aprendidas até este momento?

Um dos grandes aprendizados que tiramos dessas experiências é a necessidade de ter um respaldo técnico por trás daquilo que oferecemos, pois precisamos ter certeza de que os nossos serviços são de qualidade. A Saint Gobain já participou de outros projetos de moradia popular utilizando soluções de Light Steel Frame (LSF) e a construção a seco para atender as Faixas 1 e 2 – famílias com renda bruta de até R$ 4 mil – de programas habitacionais do governo. Hoje, a maioria dessas iniciativas usam sistemas tradicionais de construção como blocos de concreto e alvenaria estrutural. 

O grande desafio na adoção do LSF é cultural, porque os métodos tradicionais são mais fáceis de serem implementados. Existe uma dificuldade por parte dos executores em entender o funcionamento de novos sistemas e materiais e investir neles. Além disso, há a necessidade de contratar mão de obra especializada para executar projetos dessa natureza que, hoje, é escassa. 

Visto isso, a Saint-Gobain busca capacitar e treinar profissionais na utilização de métodos construtivos inovadores, ou indicar parceiros que sejam especializados. É muito importante que todos os players que trabalham no mercado de construção a seco possam trazer soluções que estejam de acordo com as normas técnicas e desempenho, só assim vamos conseguir fazer com que as soluções consideradas inovadoras cresçam em relação às tradicionais.

Na sua opinião, quais são os principais desafios para superar o déficit habitacional?

Na minha visão, o maior desafio está relacionado à homologação de novos sistemas construtivos. Dentro da discussão sobre déficit habitacional, estamos nos referindo, basicamente, a programas do governo. Por exemplo, existe uma série de premissas e cartilhas que dificultam a utilização de sistemas inovadores como o Light Steel Frame em programas habitacionais. Há inúmeros documentos que precisam ser enviados. O processo é muito complexo, são diversas etapas para aprovar empreendimentos que utilizam sistemas como esse, então às vezes é mais fácil optar pelo tradicional. 

O problema é que a construção nos moldes convencionais não vai resolver o déficit habitacional, porque ela é muito morosa. Nesse cenário, sistemas industrializados e inovadores podem dar mais velocidade, porém, é necessário que haja incentivos governamentais para que eles possam ser utilizados dentro desses programas. 

Além disso, soluções com tecnologia embarcada ainda não conseguem ser tão competitivas quanto as tradicionais, do ponto de vista financeiro. Dependendo do tipo de moradia que se pretende construir, existe o desafio do equilíbrio de custo, porque para fazer mais rápido, naturalmente há um gasto maior.

Como vocês avaliam a postura das grandes empresas frente ao déficit habitacional no Brasil? Existe uma necessidade de maior cooperação?

Entendo que as companhias poderiam trabalhar mais juntas, desenvolvendo, por exemplo, soluções que se adequem melhor umas às outras. Por meio da colaboração, é possível acelerar a criação e o desenvolvimento de soluções mais adequadas e completas. 

Quando se trata de sistemas inovadores, é essencial pensar na interferência que um sistema causa no ambiente em que ele será inserido e como ele interage com outros produtos ou sistemas. Assim, é necessário torná-los compatíveis com as outras interfaces. E são nessas interfaces que entram outras empresas do setor, que podem trabalhar em conjunto para resolver alguma dor pré-existente. 

Vejo que há uma série de empresas tradicionais do setor que trabalham há muitos anos atendendo a essa demanda, e empresas novas que querem entrar nesse universo. Vale ressaltar que o déficit habitacional passa por toda a cadeia da construção.

 A grande questão, na minha visão, não é só o interesse das empresas em participar dos projetos, mas o interesse do próprio governo de querer acelerar a solução para esse problema, com incentivos para que isso seja possível, porque o déficit só aumenta. É parte do trabalho do governo dar subsídios, principalmente se tratando de sistemas de construção mais rápidos, limpos e sustentáveis. Além da liberação de recursos, é necessária a criação de um ambiente competitivo, para que soluções inovadoras possam crescer e entregar em termos de desempenho e performance.

Qual a visão da Saint-Gobain em relação aos negócios sociais focados na temática de habitação?

Eu acho super importante. Nós temos conversado com pessoas que possuem projetos parecidos e percebemos que muitos deles acontecem dentro das comunidades, das favelas, justamente para que se possa movimentar aquele ecossistema. Acreditamos que para desenvolver novos produtos e soluções, é preciso entender a necessidade do cliente. 

Quando falamos em atender as diversas comunidades que existem no Brasil, temos que estar inseridos naquele contexto, e ninguém melhor do que as pessoas que moram nesses locais para trazerem sua realidade. Temos visto diversos projetos sociais que amarram demandas da região com a capacitação de mão de obra local, o que ajuda a melhorar a qualidade de vida das pessoas, tanto de quem precisa do serviço quanto de quem o presta. Cada vez que trabalhos como esses são feitos dentro de uma comunidade, com pessoas que ali vivem, entendo que a assertividade é muito maior.


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