6 de julho de 2021 Artigos

O uso da tecnologia na saúde

Entenda o papel da inteligência artificial, machine learning e computação em nuvem para reduzir o tempo de desenvolvimento de novos medicamentos, garantindo a segurança e eficácia.

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A área de pesquisa e desenvolvimento com novos medicamentos sempre representou uma fatia significativa dos investimentos feitos pela indústria farmacêutica. De acordo com o relatório divulgado pelo Escritório de Orçamento do Congresso dos Estados Unidos (CBO), o setor dedicou US$83 bilhões em despesas com P&D em 2019. Isso significa que, do orçamento total disponível, cerca de um quarto da receita líquida é voltada para a atividade de pesquisa, participação maior quando comparada a outros setores que têm a ciência como cerne do negócio.

No entanto, o retorno obtido com o lançamento de um fármaco reduziu drasticamente nos últimos anos, de 10,1% em 2010, para 1,9% em 2018. Os dados são do relatório anual realizado pela Deloitte, empresa de consultoria internacional. Apesar do declínio nas vendas contribuir, a despesa com P&D mostra-se como fator principal nesta equação. Tal cenário impõe desafios para a indústria farmacêutica, uma vez que o mercado se torna cada vez mais competitivo, a exigência dos consumidores aumenta e a prevalência de doenças crônicas, também.

Mesmo assim, vale ressaltar que a indústria farmacêutica segue sendo uma das mais lucrativas no mundo. Um estudo publicado na revista médica JAMA Network, em 2020, aponta que as empresas do setor farmacêutico possuem uma margem de lucro líquida de 13,8%, seis pontos percentuais a mais quando comparadas as companhias que compõem o S&P 500, índice financeiro que reflete o desempenho das 500 maiores organizações estadunidenses de capital aberto.

Considerando todos esses fatores, convidamos especialistas da academia e do ecossistema de startups brasileiro para debater as possíveis saídas e soluções para o setor. Ao longo do texto, abordaremos o impacto do uso de tecnologias como inteligência artificial, computação em nuvem, machine learning e IoT na pesquisa e no desenvolvimento de novos fármacos, o papel das agências reguladoras neste processo e a importância da aproximação entre diferentes atores para acelerar a inovação no setor de saúde.

IA, Machine Learning e big data: a hélice tripla para superar os desafios do setor

Gustavo Marchini, cofundador da Tovem Biotech, startup que presta consultoria no desenvolvimento de implantação de projetos de P&D, acredita que a indústria farmacêutica possui dois gargalos principais. 

“Para que um novo fármaco seja lançado no mercado, é realizado um complexo processo de P&D em que são estudadas cerca de 10 mil moléculas em até dez anos e com custos estimados entre 1,3 e 2,8 bilhões de dólares. Além disso, estes custos têm aumentado nos últimos anos conforme são definidas normas mais rígidas visando a garantia da segurança do medicamento”, explica. “Vale ressaltar que aproximadamente metade destes custos são referentes aos estudos clínicos de fase três, que são realizados na segunda metade do período de desenvolvimento e no qual cerca de 90% dos candidatos a fármacos falham por não serem suficientemente eficientes ou por apresentarem efeitos adversos impeditivos”, diz.

Segundo o empreendedor, grande parte do dinheiro gasto poderia ser poupado com uso de melhores métodos de avaliação pré-clínica, utilizando computação, Inteligência Artificial e serviços de nuvem. Rodrigo Faccioli, CEO da MI4U — startup especializada em big data e IA para a indústria farmacêutica — reforça essa ideia e acredita que as tecnologias podem ajudar o setor a superar os diversos desafios existentes, como redução de custos em P&D, diversidade populacional e o surgimento de novas doenças. 

“Nós estamos desenvolvendo um modelo de Inteligência Artificial multifoco em parceria com uma empresa portuguesa de biotecnologia chamada Bioprospectum. Hoje, a maioria das soluções de IA disponíveis no mercado analisam a molécula para apenas uma doença, caso ela não funcione, ela é descartada”, reflete o pesquisador. “Nosso desafio é colocar vários alvos e ver em qual ou quais deles a molécula obtém sucesso, ou seja, de um único experimento de inteligência artificial, é possível mapear mais do que uma única doença, e isso tangibiliza uma economia de tempo enorme para a indústria.”

O impacto da pandemia em P&D

Durante o último ano, o mundo inteiro pôde observar o esforço conjunto da comunidade científica para desenvolver uma vacina eficaz contra o novo coronavírus. Um processo que geralmente leva anos, se concretizou em meses. Rodrigo Faccioli, da MI4U, acredita que o cenário exaltou ainda mais os benefícios advindos das tecnologias. “As agências FDA e a Anvisa aprovaram as vacinas de maneira muito rápida, sem abrir mão da segurança. Nem todas as propostas foram aceitas, tiveram algumas reclusas. Em termos de eficiência e segurança, as agências regulatórias mantiveram suas qualidades, o que enaltece ainda mais essas tecnologias [IA, machine learning e computação].”


Para Lorane Hage Melim, professora doutora na Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), a inclusão e a aceitação de novas técnicas por parte das agências regulatórias é fundamental para aumentar a capilaridade do uso de tecnologias em uma área tão regulada como a indústria farmacêutica. 

 

“Essas tecnologias estão em plena ascensão no planejamento e no desenvolvimento de novos fármacos. Inclusive, muitas delas estão substituindo testes in-vitro e in-vivo, e têm sido aceitas pelas agências regulatórias, o que para nós, pesquisadores, é um avanço enorme”, conta. “No momento em que você está planejando um fármaco e tentando isolar uma molécula candidata em meio a dez mil, o uso das tecnologias otimiza muito o tempo de pesquisa, além de reduzir custos.”

As infinitas possibilidades geradas pelas novas tecnologias

Em paralelo à evolução computacional, Gustavo Marchini, da Tovem Biotech, destaca os avanços obtidos nas etapas dos ensaios pré-clínicos no desenvolvimento de novos medicamentos. Diversas técnicas foram criadas com o intuito de reduzir ou até eliminar o uso de animais na experimentação e melhorar a segurança e relevância dos resultados”, diz. “Uma que podemos mencionar é a iniciativa CiPA [Comprehensive in vitro Proarrhythmia Assay], que tem como objetivo o desenvolvimento de um novo ensaio de segurança farmacológica para detectar o efeito pró-arrítmico no coração. O interessante deste método em desenvolvimento é o uso tanto de tecnologias in-silico, com simulações realizadas no computador, quanto o uso de modelos celulares mais avançados, como as células do coração derivadas de células tronco pluripotentes induzidas. Neste cenário, a Tovem Biotech desenvolveu um método que pode ser utilizado para avaliar o risco pró-arrítmico em células cardíacas.”

Na opinião do pesquisador, a abordagem CiPA é um exemplo de como a junção entre tecnologia computacional e métodos experimentais podem gerar resultados mais robustos e preditivos durante a etapa pré-clínica para reduzir os riscos na elaboração de novos fármacos.

Além de auxiliar em P&D, Cristiano André da Costa, professor diretor da SOFTWARELAB, núcleo de inovação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), fala sobre as inúmeras possibilidades que o uso da IoT, IA e serviços de nuvem podem abrir para o setor de saúde como um todo. “Já pensou que legal conectar os dados do IoT com os dados dos hospitais? Eu chego no hospital com o meu cartão SUS, autorizo aquele estabelecimento a ter acesso ao meu prontuário e, a partir daí, ele sabe todo meu histórico de saúde e os dados dos meus dispositivos inteligentes”, afirma. “Isso é empoderamento, e aí entra o papel da Inteligência Artificial. Ela transforma todos esses dados em informação para o médico, para que ele possa traçar um cenário que seja mais viável. Outro aspecto é o próprio futuro, o prognóstico. Imagina o governo empoderado de uma base de informações dessas para mapear e repensar o sistema de saúde, as universidades para pesquisas e os hospitais para planejamento.”

GAFAM: o que a presença das Big Techs significa para o setor

Nos últimos anos, tem sido cada vez mais comum a parceria entre as gigantes de tecnologia, como Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft (a origem do acrônimo Gafam), e empresas de saúde. Para Rodrigo Faccioli, da MI4U, esse movimento é natural.

“Quem detém o conhecimento da inteligência artificial e a infraestrutura para fazer o processamento de dados é a indústria tech. O mesmo know-how utilizado na visão computacional de carros pode ser aplicado na análise de imagens para detectar câncer e outras questões de saúde.”

O empreendedor ressalta, porém, que ensinar o computador a encontrar padrões não é suficiente. É necessário a ajuda dos profissionais de saúde para formar equipes e utilizar esses dados para desenvolver novos medicamentos e tratamentos. Por isso, as big techs estão cada vez mais presentes no setor.

Gustavo Marchini, da Tovem Biotech, enxerga a aproximação entre os dois setores com bons olhos, principalmente para o ecossistema de healthtechs. “Todo o processo envolvido no setor farmacêutico é extremamente complexo com custos e tempos muito elevados. O apoio das maiores empresas de tecnologia do mundo é fundamental para que startups com ideias inovadoras possam seguir desenvolvendo produtos e serviços de forma a obter resultados importantes  para parcerias com a grande indústria farmacêutica”, afirma. “Além disto, estas gigantes da tecnologia podem contribuir imensamente com a evolução das tecnologias empregadas atualmente, tanto para auxiliar diretamente na obtenção de dados a partir de modelos computacionais, como na organização e gestão dos resultados dos estudos em animais e humanos.”

Universidade e indústrias: a importância do elo entre os dois universos

Cristiano André da Costa, da SOFTWARELAB, considera a parceria entre o meio acadêmico e a indústria um fator fundamental para promover a inovação no país, mas reforça que ainda há poucos exemplos. “Nós ouvimos muito a sigla P&D&I [Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação]. Quem faz pesquisa é a universidade, quem faz inovação é quem está no mercado, são as startups e as empresas, e o ‘D’ é dividido, um pouquinho aqui, um pouquinho ali”, explica. “Se nós unirmos essas forças, conseguiremos trabalhar nos problemas da indústria que, às vezes, são muito específicos, como a automação de atendimento de clientes, por exemplo. Dá pra fazer isso alinhando uma pesquisa com uma universidade, usando um processo inteligente, um algoritmo que minimiza tempo e que reduz o risco. Assim, você trabalha o ‘P’ o ‘D’ e o ‘I’ de uma forma integrada.”

A professora doutora Lorane Hage Melim concorda e ressalta a importância de fortalecer iniciativas em outras regiões do Brasil. “A realidade encontrada no estado de São Paulo é muito distante do restante do país. Existe todo um apoio e um investimento em inovação, como a Fapesp, o PIPE, o Supera, e diversos editais. Quando você vai para outros locais, como Norte e Nordeste, o cenário é outro, não há muito incentivo para as universidades e para as empresas.”

Segundo a docente, que reside e trabalha na cidade do Amapá, no estado homônimo, Região Norte do país, ainda há uma cultura bairrista enraizada em certas regiões, o que dificulta a aproximação entre esses dois universos e vai na contramão do ideal proposto pela inovação aberta.

Ponto final

Com base nas visões expostas ao longo do painel, é possível concluir que o investimento em novas tecnologias de pesquisa, experimentação e ensaios clínicos pode ser a chave para reduzir custos e  desenvolver fármacos cada vez mais eficazes. Apesar de todos os aspectos negativos, a pandemia do novo coronavírus enalteceu os benefícios advindos do uso de recursos tecnológicos e provocou mudanças significativas nos protocolos das agências reguladoras. A esperança é que essa agilidade na aprovação de testes se estenda para o futuro, impulsionando ainda mais o cenário de inovação no setor de saúde. Neste contexto, a parceria entre entre big techs, startups, universidades e empresas se tornam fundamentais para enfrentar os desafios de um setor tradicionalmente conservador e altamente regulado.