Uma análise com diferentes especialistas sobre os desafios e maturidade do segmento de logística reversa automotiva e as perspectivas para o futuro.
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Com a adoção de novos modais e motores elétricos, o setor automotivo, especialmente o segmento de logística reversa automotiva, é desafiado a implementar novas práticas e processos relacionados ao descarte e ao reaproveitamento de produtos e resíduos. Por se tratar de um segmento ainda embrionário no Brasil, as discussões sobre os procedimentos que visam dar um destino adequado aos resíduos e evitar que a mesma peça volte a ser produzida ainda são incipientes, mas existem alguns pequenos avanços.
Um exemplo é a Lei do Desmanche, que foi sancionada em 2014 em todo o país. Com a legislação, foi possível a entrada de novos players no mercado, que ainda desbravam um cenário de gargalos ambientais, econômicos e regulatórios de armazenamento e reciclagem.
Para evoluir a pauta, empresas e startups estão desenvolvendo soluções tanto para superar os desafios já mencionados, quanto para estabelecer um processo maduro e consistente para o ecossistema.
Por mais que a mobilidade urbana esteja ganhando novas tecnologias e o comportamento de locomoção esteja mudando, para Helma Souza Pinto, professor e pesquisador da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), os gargalos também dizem respeito à primeira fase do processo, devido ao fato da logística ser incipiente.
“Logística reversa no Brasil é ainda embrionária, tanto que não há legislação própria que regulamente o setor e as atividades relacionadas. Não há sequer estatísticas confiáveis disponíveis. Boa parte dos materiais que poderiam ser reciclados ou reaproveitados é descartada irregularmente no ambiente ou segue para lixões e aterros sanitários."
Helma Souza Pinto, professor e pesquisador da Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
Souza comenta também sobre questões culturais e de matriz energética. Para o professor, “há ainda uma discussão muito importante relacionada aos carros elétricos no que se refere à produção da energia elétrica”. Isso porque, no Brasil, boa parte da energia elétrica é gerada por usinas hidrelétricas, que até pouco tempo eram consideradas formas limpas de geração de energia. Entretanto, os danos ambientais provocados pela construção de barragens colocaram em xeque essa afirmação, ressalta o professor.
Já em relação ao compartilhamento de veículos, Souza afirma que “o benefício esperado é que haja uma diminuição de automóveis utilizados individualmente e a consequente diminuição de veículos no fim da vida útil. Porém, no que se refere à logística reversa na cadeia automotiva, os desafios são os mesmos, independentemente da origem dos veículos, sejam de pessoas físicas, empresas, utilizados individualmente ou de forma coletiva”.
Arthur Rufino, CEO da startup Octa, destaca a diferença entre os grandes e pequenos centros urbanos. “Ainda não há grandes reflexos no mercado da logística reversa automotiva, uma vez que esse movimento de transformação na mobilidade atinge uma fatia muito pequena da população veicular brasileira. A realidade é bem distante do que vemos no Sudeste”, diz. “Existe um tradicional ‘êxodo urbano’ desses veículos à medida que são substituídos por mais novos nas capitais, mas o mercado evolui para melhorar o acesso a veículos cada vez mais novos e melhores nas periferias e cidades do interior. Isso ‘empurra’ muitos veículos para a configuração de ’final de vida’ por razões de mercado e não necessariamente técnicas”, afirma o CEO.
Rufino usa como exemplo a frota de ônibus da cidade de São Paulo, que, segundo ele, tem uma idade limite de dez anos para circulação, mas a oferta é tão grande que os tradicionais compradores acabam não sendo suficientes para consumi-los, e hoje já atuamos na desmobilização desses veículos direto para desmontagem. “Ao mesmo tempo, todo e qualquer movimento que injete veículos novos no mercado acaba criando demanda de redução da frota mais antiga, o que favorece empresas como a Octa na frente de captação de veículos em final de vida”, analisa.
Chicko Souza, fundador da startup Plataforma Verde, percebe uma grande discrepância ao comparar a atividade de logística reversa automotiva por aqui com outros países. “A Suécia, por exemplo, já efetuava a logística reversa desde a década de 1970 e 1980.”
Helma Souza Pinto pontua que, em países mais desenvolvidos, a questão da reciclagem e da logística reversa já estão melhor incorporadas no dia a dia das pessoas e nas práticas empresariais, seja por adequação às leis, seja para solucionar problemas como falta de espaço físico para destinação incorreta de resíduos. “No Japão, o comprador de um carro novo já paga por uma taxa destinada à reciclagem dos componentes no fim da vida útil do veículo. Em 2016, mais de 90% de todos os pneus usados eram reciclados ou tinham destinação ambientalmente correta. Números como esses só são superados por países como a Alemanha, onde praticamente 100 recebem a devida destinação após o fim da vida útil”, explica.
Rufino destaca que “em países europeus, asiáticos ou na América do Norte, a taxa de desmobilização da frota nacional como veículo em final de vida varia entre 3% a 6% anualmente, enquanto no Brasil não há registro de nada além de 0,5% ao ano”. O fundador explica que veículos no final de vida (VFV) são caracterizados como qualquer veículo que deixa de circular. “Seja por razões técnicas como colisão e idade, seja por questões administrativas como bloqueios, dívidas e tributos, seja por motivos mercadológicos como depreciação avançada e configurações específicas, temos um mercado endereçável que supera os R$ 40 bilhões no Brasil e não acreditamos que ele gere mais de R$ 3 bilhões atualmente, mesmo considerando a fatia ilegal dessa receita”, diz.
O fundador da Plataforma Verde ressalta que, como mercado, temos ainda muito a amadurecer. E acrescenta: “como já temos os ensinamentos passados do que foi muito aplicado, eu acredito que vamos ter, primeiro, um momento de consolidação do mercado, e, em uma segunda onda, o desenvolvimento de inovações na logística reversa veicular”.
Daniel Borges, gerente geral da Renova Ecopeças, reflete sobre como as mudanças na mobilidade urbana e o amadurecimento do mercado de logística reversa automotiva abrem espaço para novos players voltados para a Economia Circular.
“As mudanças no comportamento de consumo de peças mudaram. Hoje o consumidor não busca somente economia, mas também comprar de empresas que possuem responsabilidade concreta dentro dos eixos de ESG [Ambiental, Social, e Governança]. Isso abre cada vez mais espaço para empresas sérias e comprometidas em entregar um produto com qualidade, procedência, garantia e rastreabilidade, e diminui o espaço dos desmanches ilegais."
Daniel Borges, gerente geral da Renova Ecopeças
O gerente afirma que os modelos de logística reversa e de desmontagem veicular provaram-se não só financeiramente sustentáveis, mas extremamente benéficos para a sociedade, além de estarem altamente aderentes aos novos padrões e comportamentos de consumo. “A pessoa compra aquela peça sabendo que ela não é proveniente de roubo, furto ou latrocínio, sabendo que os mais modernos métodos de gestão de resíduos foram empregados, e que, se ele precisar trocar a peça, será atendido dentro das melhores práticas de relação com o consumidor. Quem conhece nosso modelo de negócio, se apaixona imediatamente”, explica.
Paulo Moura, CEO da startup Eagol, avalia que, no caso dos veículos elétricos, o principal desafio será a demanda por componentes novos, provocando um movimento de adaptação das empresas que já trabalham com veículos a combustão. “Com veículos que utilizam baterias, o acompanhamento do descarte deverá ser feito de forma muito segura, criando novas oportunidades para fornecedores e parceiros dessa cadeia produtiva”, diz.
Carlos Henrique Dallagnol, fundador da startup Leevo, acredita que a transformação do conceito de veículo como um bem para um serviço, como acontece nos modelos por assinatura, por exemplo, levará inevitavelmente à adoção de um sistema de logística reversa mais eficiente. “Assim como ocorre com todo e qualquer problema que afeta um número significativo de pessoas, a necessidade de implantação de uma logística reversa eficiente certamente representa uma oportunidade de rentabilização, podendo gerar valor não somente para o frotista, mas para toda a cadeia, que ganha em termos de eficiência e redução de custos”, afirma.
Para Chicko Souza, o modelo de logística reversa pode se tornar rentável no mercado nacional, mas como um novo segmento da indústria de gestão de resíduos focada em resíduos veiculares. “Ela acaba sendo lucrativa para a sociedade como todo, porque você começa a ter o rastreio das peças de desmontagem, consegue dar baixa no veículo e nas suas documentações e ter um uso mais consciente das matérias primas. Além de ter peças retiradas para reinserir no mercado, sejam recicladas, sejam remanufaturas”, diz. “Eu acredito que ter esse controle e clareza vai ajudar muito o mercado de resíduos e a reutilização de materiais. Esse mercado vai crescer muito e mostrar a sua importância dentro do setor.”
Borges analisa que o segmento da reversibilidade está em ebulição. Ressalta ainda o surgimento de novos players oferecendo soluções para dores de todas as etapas da cadeia e aproveitando as oportunidades de negócio. “A Renova Ecopeças cresceu dois dígitos em 2020 com relação a 2019, e, no primeiro quadrimestre de 2021, estamos crescendo, até o momento, três dígitos. O conceito de Economia Circular já não é mais o futuro, é o presente. Ele está acontecendo, o mercado está se transformando rapidamente, e quem perder esse barco, ficará para trás”, diz.
Dallagnol sugere que, para haver uma política de logística reversa automotiva mais efetiva, é fundamental que o Estado passe a estimular a produção e aquisição de veículos elétricos. “Além disso, é importante que as montadoras ofereçam incentivos para o retorno e a destinação adequada dos componentes dos veículos produzidos”, afirma.
Chicko Souza usa o exemplo de países na Europa, onde as políticas públicas urbanas proíbem a entrada de carros nos centros de algumas cidades. “As políticas urbanas podem ajudar com exigências, como no Estado da Califórnia, que proíbe a utilização de veículos pesados movidos a diesel e exige que sejam trocados para a utilização de outros tipos de sourcing, inclusive veículos elétricos”, diz.
Para Borges, o envolvimento de todos os setores da sociedade é fundamental. “Os consumidores estão fazendo a sua parte, exigindo produtos de empresas ambiental e socialmente responsáveis. A iniciativa privada, se já não está movendo ações concretas nesse mesmo sentido, está no caminho. O poder público, por sua vez, mostra-se cada vez mais aberto para discutir e adotar políticas que reduzam o risco de passivo social, ambiental e legal. Estou otimista, e vejo convergência de vontade e esforços entre todos os agentes. Uma política nacional de desmontagem, ainda pendente, será importantíssima para alavancar o setor”, finaliza.
Como podemos notar, os novos modais de mobilidade urbana e os novos motores balançam o mercado de reversibilidade, aquecendo todo o ecossistema. A logística reversa automotiva oferece oportunidades interessantes para as empresas e startups atuantes neste ambiente que poderão consolidar modelos de economia circular e reciclagem automotiva, entregando soluções socioambientais seguras e responsáveis. Para implementação efetiva e eficiente, também percebemos a importância da participação ativa e indispensável de todos os membros da cadeia, consumidores, indústria e estado.