22 de março de 2021 Artigos

A descarbonização do setor energético

Especialistas abordam como a transição para energias renováveis abre novas oportunidades de negócio e o papel das startups neste movimento.

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Se a busca pela sustentabilidade nas organizações e na sociedade como um todo não é exatamente uma pauta recente – já em 1992, o Rio de Janeiro sediou a histórica Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, que ficou popularmente conhecida como Rio/92 – nos últimos anos, em virtude de diversos fatores que vão do avanço da digitalização a uma preocupação crescente com o aquecimento global, uma agenda sustentável passou, de fato, a ser tomada como uma preocupação central por parte de governos, companhias e opinião pública.

Dados recentes atestam este movimento. Grandes companhias das mais diversas indústrias se uniram, por exemplo, no RE100, iniciativa na qual empresas firmam o compromisso de ampliarem o uso de fontes renováveis em suas operações. Ab InBev, Apple, Bank of America, Barclays, Chanel, Coca-Cola, Danone, Facebook, Google, HP, Johnson & Johnson, Microsoft, Nike, Sony, Unilever, são alguns dos exemplos de empresas que participam do RE100.

Além disso, segundo estudo da Challenge Advisory divulgado no final de 2018, 62% dos executivos já consideram essencial uma estratégia de sustentabilidade. Dentro deste contexto, os investimentos em novas formas de geração energética baseadas em fontes sustentáveis têm crescido de modo expressivo. Um relatório da BCC Research indica que o mercado de energias renováveis deve movimentar, até 2023, US$ 855,2 bilhões, após atingir valores de mercado na casa US$ 636,1 bilhões em 2018, o que indica um crescimento médio de 6,1% dentro deste ciclo.

Dentro deste contexto, a Agência Internacional de Energia, em pesquisa de 2019, aponta que as fontes renováveis já respondem por mais de 25% da produção global de energia. Conforme indica o relatório, a energia solar fotovoltaica, a energia hidrelétrica e a energia eólica são, respectivamente, as fontes renováveis que mais crescem no mundo, seguida pela bioenergia, gerada a partir de materiais orgânicos.

Dado este movimento de transformação, neste painel, trouxemos diferentes especialistas do mercado e do ambiente acadêmico para discutir as perspectivas de negócio e desafios relacionados às novas formas de geração de energia limpa.

A descarbonização do setor de energia como fator-chave para um mercado mais sustentável

Para Felipe Cardoso dos Reis, gerente de desenvolvimento de produtos da SUNEW, a geração energética é determinante dentro da discussão sobre sustentabilidade. Todavia, para que esse movimento avance de modo mais expressivo, serão necessários mais investimentos para um desenvolvimento tecnológico que sustente a transformação das matrizes energéticas.

"A descarbonização do setor energético é peça chave para a redução da emissão de poluentes na atmosfera. A redução do custo da matéria prima e o ganho de escala são os principais desafios para as tecnologias entrantes. O silício está no mercado há 70 anos, ganhando significativa representatividade nos últimos 10 anos. Além do impacto climático, essa ampliação dos horizontes de geração de energia proporcionam benefícios econômicos diretos e indiretos, como a criação de novos postos de trabalho. Toda oportunidade traz um desafio, apesar dos avanços expressivos, a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico exigem uma grande demanda por investimento, além de políticas que incentivem a alocação de recursos na busca pela viabilidade técnica e econômica dessas soluções."

Os benefícios diretos das fontes renováveis

Aníbal Wanderley, diretor da Cerensa Inteligência Ambiental, destaca alguns dos impactos positivos e perspectivas ligadas às fontes de energia renovável que, superando as questões ambientais, trazem vantagens no plano operacional das empresas.

"O primeiro impacto positivo do uso da energia renovável é a proteção ao meio ambiente. Além disso, vencido o desafio de viabilizar o investimento, a sua grande vantagem mesmo é o custo operacional estável no longo prazo em relação ao uso de formas de geração de energia não renováveis. A energia nuclear exige extrair minérios e processar o combustível, caríssima. Não é renovável. O uso de combustíveis fósseis segue o mesmo caminho. Em ambos os casos, a expectativa de esgotamento das fontes de combustíveis sempre exigirá novos processos de exploração mineral, o que implica em oscilações de preços de commodities associadas. Ainda há o agravante de vivermos uma tendência de imposição de taxas sobre emissões de gases de efeito estufa sobre processos e produtos intensivos em Carbono (CO2e) em todo mundo. Neste sentido, o etanol e o biodiesel são conquistas muito importantes no campo das renováveis. Mas precisamos avaliar essas alternativas sob um prisma temporal. São excelentes fontes de energia, mas podem ser superadas como alternativas à medida que outras fontes renováveis mais nobres ganhem relevância."

Um ambiente de negócios mais sustentável

Renan Gaiad, gerente de sustentabilidade e procurement da AMBEV, destaca, por sua vez, as oportunidades que as fontes renováveis oferecem para o mercado e o processo de democratização destas opções que, segundo o executivo, não estão mais restritas apenas às grandes companhias.

"Novas formas de geração energética trazem por si só maior competitividade ao setor de energia o que barateia os custos com energia de forma geral, contribuindo para a sustentabilidade dos negócios. E aqui, não somente os grandes negócios com alta capacidade de investimento, mas também os pequenos que conseguem hoje acessar diversas soluções com baixo investimento. Além disso, o consumo energético renovável preserva o meio ambiente e gera impacto social, logo a própria sociedade se perpetua o que leva a uma evolução também dos negócios. Todos saem ganhando. Na Ambev, por exemplo, somente com a implantação de usinas solares para atender 100% dos nossos centros de distribuição, vamos evitar a emissão de 4.6 toneladas de CO2 por ano, equivalente a retirar 2.3 mil carros das ruas ou plantar 32.800 árvores por ano."

O crescimento do uso de energia solar via mercado livre e geração distribuída

O avanço do mercado livre de energia e dos modelos de geração distribuída, por sua vez, tem impulsionado o uso de energias sustentáveis. Segundo dados da consultoria ePowerBay, do total de 10,8 gigawatts em capacidade de outorgas emitidas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) em 2019, 82,8% foram para projetos de energia limpa que serão negociados no Ambiente de Contratação Livre. Andrigo Antoniolli, doutorando, pesquisador e mestre em energias renováveis pela UFSC, comenta este cenário, com destaque para resoluções normativas que estão destravando o mercado de energia no Brasil.

"Não só o mercado livre, como também o mercado de geração distribuída (GD) está se expandindo no Brasil. Minha especialidade e foco está dentro do mercado de GD desde o ano de 2011, portanto, posso afirmar que após a introdução das resoluções normativas da ANEEL RN 482/2012 e RN 687/2015, a energia solar fotovoltaica para pequenos consumidores, como é o caso residencial, vem crescendo expressivamente. Nos últimos 5 anos foram mais de 290.000 novos telhados fotovoltaicos instalados pelo Brasil, que juntos acumularam cerca de ~1,8 GW de potência instalada, segundo Banco de Informações de Geração da Agência Nacional de Energia Elétrica."

As oportunidades no plano da migração para o mercado livre de energia

Rodrigo Crisóstomo, coordenador de facilities e gestão de energia da PETZ, explica como a migração para o mercado livre de energia tem sido um vetor de geração de oportunidades para a companhia do varejo pet, incluindo a própria compra de energia limpa.

"A motivação de migrarmos para o mercado livre de energia envolve o próprio processo de crescimento da PETZ. Estamos com 136 lojas e, dentro deste cenário, a previsibilidade da gestão energética e da precificação, dentro do mercado cativo, é muito mais complexa, além dos próprios custos que naturalmente se expandem. Neste sentido, a migração para o mercado livre veio com o intuito de ganharmos eficiência no plano financeiro e operacional. Hoje temos 4 unidades operando no mercado livre e 36 em processo de migração. Além disso, como pano de fundo, há a questão da sustentabilidade, pois, com essas unidades que já migraram e com as outras 36 que irão finalizar seu processo de inserção no mercado livre até 2022, pretendemos investir plenamente em energia renovável."

Um contexto de concorrência saudável

Aníbal Wanderley, por sua vez, destaca a importância e os aspectos mercadológicos ligados ao ambiente de contratação livre no Brasil.

"Só existem duas formas no Brasil de se consumir energia de fonte renovável certificada: ou a empresa se torna autogeradora ou ela adquire esta energia através do mercado livre. Não é possível adquirir energia de fontes renováveis certificadas no mercado cativo. Hoje o mercado livre também permite que os novos geradores de energia elétrica de fontes renováveis se viabilizem economicamente sem dependerem dos leilões de energia de longo prazo promovidos pela ANEEL. Por outro lado, o universo de empresas acessando o mercado livre como consumidoras aumenta à medida que há uma maior flexibilização nas exigências de porte para sua adesão. Os projetos de geração distribuída de energia de fonte solar já estão desequilibrando este mercado. São novos atores que antes não tinham nenhuma condição de optarem pelas renováveis. Quando uma padaria ou uma residência participa de um consórcio ou uma cooperativa de geração solar isto eleva a pressão sobre as concessionárias de distribuição de energia para que ofereçam em algum momento produtos diferenciados. O maior risco é esta estrutura de mercado antecipar de maneira informal a flexibilização do mercado livre. A pressão de consumidores e empresas com políticas específicas de descarbonização de suas matrizes energéticas muda gradualmente o perfil deste mercado. Estes dois fenômenos combinados formam um ambiente de concorrência saudável com muitos compradores e muitos vendedores ofertando energia de fontes renováveis."

Um investimento necessário

Já Felipe Cardoso dos Reis analisa o quanto os investimentos em fontes renováveis têm sido essenciais para o contexto do mercado atual e como este movimento, por sua vez, gera perspectivas que vão além da questão ambiental.

"A previsão da demanda energética mundial para 2040 é de 40kTWh, é quase o dobro do que consumimos em 2019 (23kTWh). As fontes de energia renováveis trouxeram uma nova perspectiva não apenas do ponto de vista ambiental. Além do aumento da produção de equipamentos, e da consequente geração de empregos do setor, com a construção de usinas eólicas e fotovoltaicas criam-se oportunidades de renda extra para proprietários rurais e municípios. O investimento em renováveis tem se mostrado necessário para indústrias e empresas economizarem nas suas contas de luz, ficando cada vez menos suscetíveis aos aumentos de preço."

Acompanhando o ecossistema

Dentro deste contexto, grandes empresas como a PETZ tem estudado a implementação de novos projetos e soluções que contribuam para a difusão de novas formas de geração energética. Rodrigo Crisóstomo comenta este movimento.

"O setor de contas públicas da PETZ está plenamente alinhado com a análise de novas formas de geração energética e inovação neste universo. Dentro deste contexto, neste ano, estamos estudando e desenvolvendo projetos com foco em energia solar, esse é mais um passo da PETZ em prol da sustentabilidade: no futuro de curto e médio prazo, queremos implementar para todas as nossas unidades que se alimentam de energia de baixa tensão – além daquelas que já estão no mercado livre – uma base ancorada em usinas de energia fotovoltaica."

Parcerias entre grandes empresas e startups

Este é o caso também da AMBEV, que recentemente investiu em uma parceria com uma startup de energia fotovoltaica, conforme explica Renan Gaiad.

"Estamos sempre atentos e rodando pilotos com startups que possuam modelos de negócio disruptivos dentro do mercado de energia. Sabemos que uma das grandes dores de nossos bares e restaurantes é a conta de energia, então fomos atrás de uma solução para eles e nesse processo analisamos no ano passado oito startups que possuem soluções inovadoras na forma de gerar energia. Após rodar um piloto com duas delas, decidimos investir, através da Z-Tech, nosso braço de corporate venture, na Lemon. Com a Lemon conseguimos desenvolver um modelo de negócio excelente e inovador que resolve essa dor dos nossos pontos de venda através de uma solução 100% digital e não burocrática. Lançamos esse modelo no meio da pandemia para dar suporte aos nossos bares e restaurantes nesse momento frágil e está sendo um sucesso."

Tendências e desafios

Por fim, Andrigo Antoniolli, destaca algumas tendências, oportunidades e desafios atrelados ao desenvolvimento do mercado de novas fontes de geração energética, ao longo dos próximos anos.

“A futura paridade de sistemas de GD-FV + bateria pode, no futuro, entre outros fatores, sinalizar a eventual extinção dos modelos tradicionais de serviços públicos. Hoje o armazenamento de energia por baterias já é uma realidade em muitos países, incluindo o Brasil. No entanto, a tecnologia ainda tem muito a ser desenvolvida. A evolução das baterias e a integração desses sistemas junto à rede poderão gerar novas oportunidades e benefícios tanto para o consumidor, quanto para a rede. A fonte de energia solar fotovoltaica trabalha muito bem com sistemas de armazenamento, que podem servir de apoio nas instalações elétricas de edificações, por exemplo. Em paralelo ao armazenamento de energia, temos a crescente evolução do mercado de mobilidade elétrica. Já existem estudos para reutilizar baterias descartadas pela indústria automobilística e aplicar em outras utilidades, como iluminação pública, eletrodomésticos e até mesmo backup para instalações elétricas de pequenas residências. Por outro lado, a inovação do setor e o surgimento de novas modalidades de geração de energia no mercado hoje dependem muito de questões políticas e regulatórias, um exemplo disso é a geração solar fotovoltaica distribuída e compartilhada. Esse é um excelente modelo de negócio para democratizar o uso e o acesso à produção de energia elétrica, porém as taxas e inseguranças jurídicas acabam impedindo o desenvolvimento natural da inovação. Uma alternativa seria a remodelação do mercado em conjunto das concessionárias, reguladores, provedores de tecnologia e clientes. Podendo, assim, chegar a oportunidades disruptivas para construir o mercado e melhorar o sistema de energia do futuro.”

Ponto final

A partir destas diferentes visões, podemos perceber os benefícios evidentes ligados às novas fontes de geração energética e que, embora tenham como base a questão sustentável, trazem ganhos que envolvem desde redução de custos até oportunidades relacionadas com novos modelos de negócio. Em contrapartida, para que esse mercado se consolide no médio e longo prazo e possamos tornar factível um setor energético largamente “descarbonizado”, os investimentos em pesquisa e os avanços de políticas de flexibilização são pontos prementes são desafios de ampla escala para as organizações que enxergam nas energias limpas não só um futuro rentável, mas também a construção de um legado para a sociedade como um todo.