No setor industrial, entenda o papel das deep techs e como elas estão guiando a inovação no setor rumo à indústria 4.0.
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Para que possamos analisar o papel das deep techs no setor industrial brasileiro, é importante, antes de tudo, entendermos um pouco mais sobre a maturidade tecnológica e sobre o grau de abertura do segmento para inovações de perfil mais disruptivo.
Quando analisamos a indústria brasileira a partir desses prismas, temos um cenário, à primeira vista, difuso: se, por um lado, a indústria brasileira é a principal locomotiva dos investimentos em P&D por parte da iniciativa privada, com 72,2% desses aportes de acordo com a última atualização – de março de 2020 – da pesquisa “Perfil da Indústria Brasileira” produzida pela Confederação Nacional da Indústria (CNI); por outro, apenas 1,6% da indústria têm seus processos plenamente digitalizados. A estimativa é que esse nível de digitalização chegue a 21,8% ao longo dos próximos 10 anos.
Em meio a esse contexto de contrastes, é preciso que superemos alguns desafios em prol do avanço da digitalização – e da inovação de base mais profunda – no setor industrial. É o que explica Christian Geronasso, head de inovação e conselheiro de transformação digital da SAP.
“O principal desafio está ligado à ausência de estruturas formais de inovação, que identificam e desenvolvem novas oportunidades. Há alguns anos o Gartner cunhou o termo TI Bimodal, contextualizando a importância de manter as atividades incrementais de melhoria, mas em paralelo ter um time focado na alavancagem de novas tecnologias e modelos de negócio. Esta estratégia é imprescindível para os próximos anos. Vale salientar que, muitas vezes, termos como “alta tecnologia”, por exemplo, criam um distanciamento de soluções como Blockchain e Inteligência Artificial, gerando a falsa impressão nos líderes empresariais de que são muito avançadas para o momento das companhias”, comenta Geronasso, indicando a necessidade de quebra desses paradigmas.
Por sua vez, Mauro do Santo Junior, diretor de TI e inovação da Atech – empresa do Grupo Embraer que desenvolve sistemas de controle e gestão de tráfego aéreo, defesa e mercado corporativo – reforça o aspecto cultural mais imediatista do ambiente de negócios brasileiro, fator que, por consequência, dificulta uma maior expansão das deep techs no setor industrial do país.
“No Brasil, temos um ambiente de negócios ainda muito imediatista. Quando falamos de pesquisa, de deep techs, é necessário tempo e muitos investimentos para que comece a colher frutos. O retorno demora mais para chegar (e nem sempre chega, pois, em se tratando de pesquisa profunda, pode ser que os resultados sejam inconclusivos). Esse contexto impõe grandes dificuldades e hoje, quem sustenta mais esse tipo de iniciativa são instituições de fomento como FAPESP e Capes, com cada vez menos recursos. Pensando na área de defesa – na qual a Atech atua – em países como os EUA, o Governo faz muitas parcerias para o desenvolvimento de pesquisas, sem que, necessariamente, haja um retorno claro. Se conseguíssemos criar modelos de parceria nesse sentido e aproximar a iniciativa privada das universidades, derrubando preconceitos de ambos os lados, esse fomento da inovação poderia ser compartilhado entre os governos e as empresas”, explica Santo Junior.
Traçado esse panorama, tecnologias mais avançadas, produzidas por startups e empresas que lidam com inovação profunda, começam a ganhar espaço na indústria brasileira, no esteio do avanço das discussões sobre indústria 4.0 no Brasil, tema que foi pauta de estudo do Liga Insights, em fevereiro deste ano.
Segundo gráfico da Boston Consulting Group, os eixos tecnológicos da indústria 4.0 envolvem: Big Data & Analytics; Robótica; Simulação Computacional; Realidade aumentada; Sistemas integrados; Manufatura Aditiva; IoT; Computação na nuvem e Cibersegurança. Todas essas áreas, vale frisar, são campos férteis em potencial para a exploração de deep techs no setor industrial. Um report da SGInnovate, inclusive, traça um paralelo direto entre o desenvolvimento da indústria 4.0 e o fortalecimento das deep techs, por meio das quais, temos visto rápidos avanços em tecnologias físicas, incluindo veículos autônomos, novos materiais, impressão 3D, robótica avançada; ou biológicas – engenharia genética, neurotecnologia, bioprinting.
Dito isso, o apoio do poder público, bem como, de associações de fomento ao empreendedorismo, pode ser decisivo para uma maior proximidade da indústria com tecnologias mais avançadas, de modo a se fortalecer a visão 4.0 no setor industrial brasileiro. Nesse sentido, o Governo Federal lançou no segundo semestre de 2019 um plano de ação para fomento para a indústria 4.0, coordenado pelos ministérios da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e da Economia (ME) e focado em 4 pontos centrais: Desenvolvimento Tecnológico e Inovação; Capital Humano; Cadeias Produtivas e Desenvolvimento de Fornecedores; Regulação, Normatização Técnica e Infraestrutura. Para todos esses temas foram previstas formas de financiamento e de fomento para inserir as empresas no ambiente da indústria 4.0, conforme explicita release divulgado pelo MCTIC.
O Sebrae, por sua vez, pretende lançar, nos próximos meses, um programa para o estímulo do desenvolvimento de deep techs. É o que explica Paulo Renato Macedo Cabral, gerente de inovação do Sebrae.
“Estamos definindo uma nova data de lançamento para o programa Catalisa, que assim como o nome diz, visa acelerar uma reação. A proposta é que o programa Catalisa estimule pesquisadores de universidades a criarem suas empresas a partir da tecnologia que eles desenvolveram na universidade.
Então ele é um catalisador da inovação que vai permitir que os pesquisadores encontrem um caminho, digamos, mais seguro e palatável, para eles empreenderem a partir de tecnologias que desenvolvem nos centros de pesquisa das universidades. A expectativa é que o programa comece como uma plataforma de interação entre pesquisadores e empresas. Um ambiente que visa construir uma comunidade, sem expectativa ou imediatismo para geração de negócio; o foco é ter uma trilha estruturada para inovação, junto com várias instituições parceiras, para que, com essa trilha, a gente consiga fazer nascer novas empresas de alta tecnologia, deep techs, no tecido empresarial brasileiro”, comenta Cabral.
Dentro desse contexto, mesmo que ainda exista um campo vasto para o avanço da indústria 4.0 no Brasil, o fato é que, do início de 2016 até o início de 2018, segundo levantamento divulgado no Portal da Indústria, o montante de investimentos em tecnologias digitais na indústria cresceu 10 pontos percentuais, passando de 63% para 73%. Além disso, já em 2018, 48% das grandes empresas assumiram a intenção de investir em soluções 4.0.
No hall deste avanço, as tecnologias mais profundas, como é o caso da robótica, começam a dar passos mais concretos no setor industrial brasileiro, sobretudo no setor automotivo que, segundo números divulgados pela Revista Época, concentra 70% dos robôs presentes na indústria em escala global. De acordo com reportagem do Valor Econômico de 2019, o Brasil possui cerca de 16 mil robôs industriais – sendo que 54% deles estão concentrados no mercado automotivo –, o que coloca o país como a 18º nação mais automatizada do mundo.
Não à toa, startups como a XROBO, especializada no desenvolvimento de plataformas de software para robotização em diferentes segmentos, incluindo indústria, atendimento, varejo e área de saúde, tem observado uma maior abertura por parte das empresas na adesão às soluções de robótica.
“O ambiente industrial tem sido bastante receptivo ao advento de novas tecnologias e soluções mais avançadas de robótica e IA. Em tempos de Covid-19, o uso de robôs de atendimento e de desinfecção tem sido amplamente divulgados na mídia como aliados no combate à doença, por exemplo. No mundo todo, hospitais têm adquirido tais tecnologias para ajudar no tratamento dos pacientes. E essa realidade não é diferente no Brasil. O cenário de pós-pandemia será de um mundo em que os robôs não causarão mais estranheza no convívio com as pessoas. Shoppings e hotéis já contam com robôs de atendimento muito antes da pandemia”, explica André Araújo, diretor de TI da XROBO.
Grandes empresas de tecnologia também tem contribuído com a aproximação dos conceitos de deep techs junto a indústria. É o caso da SAP, que tem investido em modelos de inteligência preditiva e de gêmeos digitais – representações virtuais de equipamentos físicos que podem ser utilizados para diversos fins, da prototipagem a projeção de cenários.
“A SAP aproxima indústrias do conceito de deep techs de forma prática. Modelos preditivos estão sendo embarcados de maneira transparente na gestão de manutenções e planejamento da produção, por exemplo. Desta forma, empresas se tornam mais inteligentes sem a necessidade de compreender profundamente a arquitetura tecnológica. Gêmeos digitais são um conceito chave para a indústria 4.0. A possibilidade de representar digitalmente modelos físicos em ambientes virtuais e levá-los a cenários de estresse têm o potencial de reduzir drasticamente o go-to-market de produtos e os custos com pesquisa e desenvolvimento. Com esta possibilidade novos materiais e modelos serão desenvolvidos, alterando as cadeias de valor industriais para os próximos anos”, explica o consultor de transformação digital da SAP, Christian Geronasso.
Para tanto, a SAP conta com projetos de inovação aberta em todo o mundo, incluindo 400 startups e 440 mil clientes engajados nos programas de aceleração da empresa. Em julho de 2019, a companhia iniciou um programa de aceleração em Tel Aviv, Israel, para impulsionar o desenvolvimento de startups ligadas a Deep Techs, que teve sua segunda rodada lançada em maio deste ano.
Outra tendência tecnológica ligada ao terreno da inovação profunda e atrelada a robótica que tem atraído investimentos é o campo da inteligência artificial. Um estudo de 2017 da Mckinsey que analisa o ambiente industrial alemão aponta alguns dos benefícios do uso de IA na manufatura, incluindo uma sofisticação da manutenção preditiva capaz de proporcionar uma redução de custos de 10% na indústria, além do desenvolvimento de robôs sensíveis ao contexto, capazes de aumentar a produtividade na manufatura em até 20%. De modo global, os investimentos em IA atingiram US$ 1 bilhão na indústria, podendo chegar a 17,2 bilhões até 2025, segundo a Market and Markets.
Neste mesmo contexto, a Atech mantém uma estreita relação com startups de base tecnológica nas áreas de inteligência artificial, IoT, visão computacional e outros.
“O controle de tráfego aéreo, hoje, envolve apenas aeronaves tripuladas, mas e os drones? Com o crescimento que estamos vendo neste segmento, em breve poderemos ter situações de conflito entre os próprios drones, e também entre eles e aviões comerciais. Por isso que todo este movimento deve começar a ser controlado, tanto do ponto de vista de regulamentação, quanto de sistemas. O que estamos fazendo aqui na Atech é estudar o tema do controle de tráfego aéreo urbano e os potenciais riscos de drones, aviões autônomos, semi-autônomos, etc. Chamamos esse estudo de consciência situacional. Nesse sentido, temos avaliado o uso IA e machine learning visando otimizar a consciência situacional e também algoritmos que nos ajudem a encontrar melhores formas de reagir às situações, para as quais se devem tomar decisões no espaço de milissegundos”, explica Mauro do Santo Junior, diretor de TI e inovação da Atech.
Nesse processo, a Atech conta tanto com o trabalho interno de P&D, quanto com um projeto que se iniciou esse ano de inovação aberta e que incluiu a criação de um centro de inovação no State para a exploração do conceito de cidades inteligentes, além de parcerias de negócio com startups hoje investidas pelo Fundo de VC da Embraer em parceria com o BNDES, FINEP e Desenvolve São Paulo, entre elas a Aquarela (Inteligência Artificial) e a DESH (IoT).
Pensando no posicionamento das startups de deep techs atuantes no setor industrial, um grande desafio inclui a própria sobrevivência do negócio, até que a tecnologia que está sendo desenvolvida seja assimilada pelo mercado. É o que aponta André Araújo, diretor de TI da XROBO.
“O grande desafio é a sobrevivência da startup que oferece tecnologias tão inovadoras que ainda não possuem demanda de mercado – seja por desconhecimento do que são tais tecnologias ou por falta de confiabilidade. Até que o conhecimento e a credibilidade no uso de tais tecnologias cheguem a um grau de maturação capaz de criar uma demanda que atinja volume de mercado, a startup precisa do apoio de investidores para se manter viva”, diz Araújo.
Por outro lado, o investimento nas deep techs tende a gerar efeitos positivos na economia do país como um todo. É o que reforça Paulo Renato Macedo Cabral, gerente de inovação do Sebrae.
“Porque o Sebrae quer estimular as deep techs? Porque essas iniciativas são os motores do futuro. Essas são as empresas que vão exportar para o mundo todo, que vão vender para o Brasil todo, essas são as empresas que terão muito pouca fragilidade e que vão puxar toda a cadeia econômica. No momento em que eu tenho uma boa quantidade dessas empresas, tenho negócios de alta qualidade, mais resilientes às crises, capazes de vender para todo o mundo e que geram empregos de alta qualificação. Ao gerar empregos de alta qualificação, eu estou falando de alta massa salarial. E aí, os funcionários dessas cadeias de empresas vão consumir nas empresas bases da pirâmide, as empresas tradicionais (inclusive as pequenas, que são o foco central do Sebrae). De modo que, com esse apoio, o Sebrae estimula todo o tecido empresarial brasileiro. Quando a gente estuda os países que são fortes, podemos observar que, por trás dessa força, existem estratégias muito consistentes de fazer empresas como essas nascerem”, conclui Cabral.
A GoEPIK é uma startup que combina machine learning e realidade aumentada por meio de uma plataforma que acelera a transformação das indústrias no direcionamento 4.0. Já recebeu investimentos de R$ 3 milhões do fundo Primatec.
A Pix Force é uma startup que desenvolveu uma solução baseada em visão computacional e algoritmos próprios para atuar em diferentes frentes da indústria – da inspeção de itens ao controle de produção. A startup participou do Fora da Lata, programa de aceleração da Suvinil com a Liga Ventures.
A Intelecy é uma startup norueguesa que utiliza machine learning para prever e evitar falhas em máquinas, melhorando os processos de produção e fornecendo informações detalhadas sobre suas operações. Já recebeu mais de US$ 1 milhão em investimentos.
A Ascent Robotics é uma startup japonesa que desenvolve robôs industriais e veículos autônomos, trabalhando também com códigos avançados de inteligência artificial para seus produtos. Já recebeu US$ 17,9 milhões em investimentos, segundo o Crunchbase.