Confira uma análise aprofundada sobre a expansão e as oportunidades envolvendo o mercado livre de energia no Brasil
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Instituído em 1998, durante o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, o mercado livre de energia surgiu como uma alternativa para que grandes consumidores conseguissem buscar valores mais competitivos de contratos de energia, tendo a possibilidade de negociar diretamente o preço de seu consumo com geradores e comercializadores.
De lá para cá, já são mais de 340 empresas que contam com autorização para atuarem como comercializadoras de energia. Por sua vez, só em 2019, o ambiente de contratação livre movimentou R$134 bilhões no Brasil, indicando crescimento de 6%, de acordo com dados da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel). Ainda de acordo com a entidade, os consumidores deste mercado tiveram uma economia de 34% em seus custos com energia.
Também segundo a Abraceel – por meio de seu boletim oficial de março deste ano –, o país conta, atualmente, com 7.222 consumidores no mercado livre, sendo que, nos últimos 12 meses o setor teve um crescimento de 22% no número de consumidores. Só na indústria, vale frisar, mais de 86% das empresas já estão inseridas no ambiente de contratação livre.
O boletim dá destaque, por fim, para os setores alimentício e comercial, que aumentaram de modo expressivo seu consumo no mercado livre de energia. Ao todo, aponta a associação, a redução de custos no ambiente de contratação livre pode chegar até a 45%.
E as expectativas para o mercado livre de energia no Brasil, envolvem um fluxo contínuo de expansão e a geração de novas oportunidades de negócio, mediante a abertura plena desse mercado que deve ocorrer ao longo dos próximos anos, se aprovados os projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional.
Neste contexto, no último mês de março, a Comissão de Serviços de Infraestrutura do Senado aprovou a PL 232/16 que trata do tema e propõe a liberação do acesso ao mercado livre de energia para todos os consumidores do país, incluindo o uso residencial comum, de baixa tensão.
Conforme noticiou o Valor Econômico, o PL segue agora para o plenário do Senado, depois para a Câmara e, se aprovado, irá permitir o processo de abertura do mercado de energia de modo gradual, ao longo de três anos e meio. Reginaldo Medeiros, presidente-executivo da Abraceel, avalia as perspectivas em torno da plena abertura do ambiente de contratação livre no país.
“Em 42 meses, a partir da homologação da nova lei, todos os consumidores poderão ser livres. Neste período, será possível implementar as mudanças necessárias para que o mercado livre se torne, de fato, acessível para todos os consumidores. Dito isso, a dinâmica que eu vejo no mercado vai ser muito semelhante ao que se vê em outros países que abriram seu mercado de energia: até aqui, o mercado livre tem sido permitido somente para um conjunto de consumidores, como se existissem dois mercados – um para os consumidores que consomem acima de 500 kW de energia; e um mercado para o consumidor abaixo de 500 kW. Isso não significa, necessariamente, que todos os consumidores vão migrar para o ambiente de contratação livre após a abertura total. O que haverá é o estabelecimento de forças competitivas, para que os próprios agentes já instalados possam competir de igual para igual – tanto as comercializadoras independentes, quanto as distribuidoras”, reflete Medeiros.
Para o executivo, um dos principais benefícios diretamente relacionados com a abertura do mercado de energia no Brasil envolve uma mudança de postura do mercado em relação aos consumidores que, por sua vez, também poderão assumir o papel de produtores de energia e gerar renda dentro deste novo cenário.
“Teremos, certamente, uma mudança de postura por parte dos agentes que estão acostumados com o mercado regulado. Surgirão empresas especializadas em consumidores de menor porte (comercializadoras varejistas) e empresas especializadas em tratamentos diferenciados para consumidores de maior porte. Além disso, em outros países, é muito comum os consumidores instalarem painéis fotovoltaicos, conseguindo obter maior volume de energia; nessa nova dinâmica, começam a surgir produtos customizados para o consumidor: assistência técnica para painéis fotovoltaicos; automação da resistência para que o consumidor possa ter o menor consumo possível e possa vender sua produção excedente de energia para o mercado. O fato é que o consumidor passa a ser não só um ente de consumo, mas um ente de produção (prosumer)”, explica o presidente-executivo da Abraceel.
Apenas para efeito de contextualização, o termo prosumer, dentro do mercado de energia, se refere a consumidores que consomem e, ao mesmo tempo, produz e comercializa seu excedente de energia.
Rafael Estrela, assessor financeiro na Astris Finance, consultoria especializada em infraestrutura e energia, por sua vez, destaca o crescimento dos contratos de longo prazo dentro do ambiente de contratação livre.
“O mercado regulado sempre foi majoritário e as empresas em geral preferiram não estar muito expostas à venda de energia no curto prazo no mercado livre, por conta da volatilidade de preço ou mesmo ao risco de crédito. Entretanto, com os investidores de projetos de geração de energia migrando do mercado regulado para o mercado livre e aliado à melhora na perspectiva econômica no Brasil (pré-coronavírus), está se desenvolvendo um mercado de contratos de longo prazo no ambiente de contratação livre, ou seja, grandes empresas (indústrias ou comercializadoras) comprando energia diretamente do gerador via contratos de prazos mais longos – movimento esse que se intensificou nos últimos 2-3 anos”, analisa Estrela.
Outro movimento que cresce no mercado livre envolve a percepção do consumidor enquanto produtor de energia. Nos Estados Unidos, por exemplo, o Departamento de Eficiência Energética e Energias Renováveis do Governo Americano, destaca o crescimento dos prosumers em seu portal, indicando que “a rede elétrica de hoje está borrando as linhas entre geração e consumo de energia” e que o consumo de eletricidade hoje, não se dá em mão única.
Segundo o Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), uma das principais vantagens da geração distribuída (conceito que traduz a geração de energia elétrica perto dos pontos de consumo), envolve uma maior liberdade e independência para esses agentes produtores, “dando uma segurança extra ao usuário”.
De acordo com dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) divulgados em 2019, o Brasil ultrapassou, no ano passado, a marca de 1 GW de potência instalada em micro e minigeração distribuídas de energia elétrica. Segundo o órgão, este movimento foi possível, sobretudo, graças às Resoluções Normativas 482/2012 e 687/2015, que permitem ao consumidor a troca com as distribuidoras da geração de energia elétrica por ele produzida de fontes renováveis ou cogeração qualificada.
E a intersecção entre mercado livre de energia, geração distribuída e uma mudança na perspectiva sobre os consumidores deve se expandir, caso mudanças políticas que seguem em discussão sejam implementadas em curto ou médio prazo.
Tramita na Câmara, por exemplo, o Projeto de Lei 4530/2019, que prevê, justamente, a possibilidade de comercialização de energia elétrica proveniente de microgeração no mercado livre. O PL atuaria, pois, como um complemento das resoluções da ANEEL, uma vez que hoje, o excedente da produção de pequenos consumidores deve ser fornecida, sem custo, para as redes de distribuição.
Outro ponto a ser considerado nessa equação envolve a mudança estrutural do cálculo do preço da energia no Brasil, o qual, a partir de 2021, levará em conta o modelo de preço-horário, e não uma contabilização semanal, como é feito atualmente.
O objetivo dessa mudança é atribuir valores de acordo com o período de produção energética e direcionar preços maiores ou menores conforme a demanda do horário. Essa mudança trará mais transparência, inclusive, para a contabilização das operações no mercado livre de energia, conforme aponta matéria do Portal Money Times.
Segundo Adriana Luz, consultora e especialista no mercado livre de energia, todos esses novos fatores que se inserem na matriz energética brasileira e nos modelos de produção, distribuição e comercialização de energia no país, geram oportunidades para startups e para o surgimento de novas tecnologias que devem dar suporte para consumidores e empresas.
“Na minha opinião, com essa abertura do mercado e a precificação horária da energia que está sendo implantada, abre-se uma grande janela de oportunidade para as empresas de tecnologia, principalmente as startups. Considerando os preços horários, as empresas precisarão acompanhar bem sua produção e os custos, e ferramentas que possam assessorar nesse acompanhamento ganham força no mercado, incluindo, por exemplo, aplicativos que possam analisar essas duas variáveis e sinalizar ações como produzir mais quando a energia estiver mais barata, qual o momento de alocar produção, etc. Para os consumidores residenciais, abre-se uma oportunidade de comprar energia por aplicativos, incluindo por meio de sistemas pré-pagos”, comenta Luz.
A pesquisadora observa ainda que, em países como a Irlanda, a venda de energia por meio de sistemas pré-pagos já é uma realidade e é um modelo de negócio com potencial para se fortalecer mediante a expansão do mercado livre.
Segundo dados da Northeast Group divulgados pela PR Newswire, até 2026, os investimentos em energia pré-paga devem superar US$ 11,4 bilhões em todo o mundo, se tornando o próximo grande mercado pré-pago, depois da telefonia celular e dos cartões de crédito.
Para Adriana Luz, outro ponto que deve ser considerado é a expansão do uso de fontes renováveis e a consolidação da geração distribuída no mercado livre; elementos esses que, por sua vez, devem impulsionar o surgimento de novos modelos de negócio e de novas tecnologias no segmento energético.
“Não podemos esquecer que toda expansão da geração distribuída, do ambiente livre de contratação e do uso de fontes como a energia solar irão demandar ferramentas tecnológicas, aplicativos, sistemas, ampliando assim, as oportunidades para as empresas de tecnologia e para as startups que souberem absorver estas oportunidades”, conclui Luz.
Dentro deste contexto, vemos surgir no Brasil soluções inovadoras que vêm se consolidando diante do movimento de amadurecimento do mercado livre, incluindo desde tecnologias para monitoramento energético, até o apoio na migração para o Mercado Livre de Energia.
A Mitsidi Projetos – startup de consultoria e pesquisa focada na eficiência energética e as energias renováveis – desenvolveu a Energy Brain, ferramenta de Diagnóstico Energético para identificação rápida de alternativas de redução de custos e correção de falhas relacionadas ao uso da energia.
“Desenvolvemos continuamente análises de migração ao mercado livre, dentro do serviço de Diagnóstico Energético. Geralmente é uma ação administrativa recomendada, quando o cliente cumpre as regras da Lei 9704/1995 e suas atualizações. As tarifas do Mercado Livre influenciam a estrutura de custos variáveis. Portanto, o custo/benefício de projetos que consomem energia, sejam reformas ou ampliações, muda consideravelmente para clientes cativos/livres”, comenta Hamilton Ortiz, fundador do Energy Brain, gerente e consultor na Mitsidi Projetos.
Ortiz acrescenta, no entanto, que para as startups e empresas que desejam atuar no ambiente de contratação livre, há algumas questões que devem ser observadas, incluindo a atual volatilidade de preços praticados neste mercado.
“O ambiente de contratação livre ainda precisa de mais transparência. Não há um registro público de valores praticados, o que cria uma volatilidade muito grande no benefício da migração. Há também um desafio para usuários que fazem a migração sem conhecer completamente o perfil de carga, precisando fazer compras pontuais com tarifa maior (no curto prazo)”, acrescentando, no entanto, que esse cenário está em constante transformação e que oportunidades podem surgir nos âmbitos da integração de dados com uso de blockchain. Com clientes como a Agência Internacional de Energia (IEA/OCDE), Ministério de Minas e Energia (MME), Agência de Cooperação Brasil-Alemanha (GIZ) e Nações Unidas (PNUD), a Mitsidi teve um crescimento médio de 34% nos últimos dois anos.
Focada no controle de danos elétricos e prevenção de riscos por meio do uso de IoT, outra startup que vem ganhando destaque dentro do novo contexto do mercado brasileiro de energia é a Electrowave.
Augusto Torrecilha, cofundador & CEO da startup, explica algumas das iniciativas da Electrowave no contexto da expansão do mercado livre, a qual, segundo ele, está diretamente atrelada ao novo perfil do consumidor de energia no país.
“O consumidor está a todo momento buscando formas de economizar ou ser cobrado de forma justa. Quem se enquadra nas qualificações para utilizar o mercado livre de energia, mesmo após fechar o contrato, já começa a estudar quem será a melhor alternativa para fornecimento de energia quando seu contrato acabar. Já empresas que não se enquadram buscam formas alternativas – bancos de capacitores, filtros harmônicos e até placas de células fotovoltaicas, por exemplo. Dito isso, acredito que o potencial do mercado livre de energia no Brasil é imenso. Hoje, nós já monitoramos algumas indústrias e comércios cuja energia é proveniente do mercado livre. Atuamos através de um indicador de qualidade da energia que leva em conta normas de prestação de serviço da ANEEL que precisam ser cumpridas”, explica Torrecilha.
A startup, segundo o CEO da Electrowave, identificou uma oportunidade de mercado, uma vez que o Brasil conta com cerca de 350 mil oscilações elétricas por ano. Através do monitoramento da qualidade da energia que chega em edificações, é possível evitar perdas, geração de custos e a perda de produtividade nas empresas.
A Enbox é uma startup de São Paulo que fornece uma plataforma para compra e venda de energia, com o intuito de facilitar a entrada e aumentar a segurança no ambiente de contratação livre. A Enbox faz parte do portfólio da Startup Farm, aceleradora paulista.
A Fohat é uma startup paranaense que conta com um portfólio de ferramentas focado em inteligência energética, integração de soluções para o controle de ativos de geração e digitalização da comercialização de energia. Já recebeu R$ 1,9 milhões em investimentos.
A Prosume é uma startup italiana que construiu uma plataforma baseada em blockchain, garantindo autonomia, independência e um local inteligente digitalizado que permite aos usuários obter energia proveniente de fontes verdes ou tradicionais, promovendo novos modelos de comunidades energéticas.
A startup americana LO3 Energy desenvolveu uma plataforma para conectar distribuidores locais e consumidores, com objetivo de estimular a compra e venda de energia em redes regionais. Já recebeu US$ 5,8 milhões em investimentos.