Entenda o ambiente de novação científica aplicada à saúde saúde, com tendências em desenvolvimento e oportunidades promissoras de mercado.
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Além de todos os impactos extremamente negativos decorrentes da pandemia do novo coronavírus – que afetaram os campos social, econômico e sanitário – em todo o mundo, a crise pela qual passa o Brasil também escancarou problemáticas que já existiam no país, cujas consequências não eram tão claras até então. Como muito tem se discutido, as dinâmicas de muitos mercados e segmentos têm sido alteradas, e muitos deles provavelmente enfrentarão mudanças que não aconteceriam em um cenário de normalidade.
Com a corrida pela criação de uma nova vacina e desenvolvimento de equipamentos para o combate ao vírus e à doença, a ciência, principalmente no campo da saúde, é novamente colocada em foco – um espaço do qual não deveria ter saído –, tal como sua importância para o desenvolvimento de um país. Ou seja, a crise atual, por si só, torna clara a necessidade de investimentos mais robustos no segmento e é conveniente esperar que isso aconteça nos próximos anos.
Indo um pouco além da expectativa em si – algo não exatamente concreto –, existem outros motivos para que se possa imaginar um crescimento do setor de Hard Sciences e biotecnologia com foco em Saúde no Brasil. O aumento do número de parques tecnológicos espalhados pelo país, por exemplo, é um deles.
De acordo com o levantamento Indicadores de Parques Tecnológicos, divulgado em 2019 pelo MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações) em parceria com a UnB (Universidade de Brasília), existiam, em 2017, 103 iniciativas de parques tecnológicos no Brasil. Dessas, 37 estavam em fase de projeto, 23 em implantação e 43 em operação. Para efeito de comparação, no ano 2000 o Brasil possuía um total de 10 parques tecnológicos em todo o país. E, apesar de uma concentração no eixo Sul-Sudeste, tais iniciativas estão presentes em todas as regiões brasileiras e em 21 das 27 unidades federativas.
Definidos pela Lei 13.243 de 2016 como “complexos planejados de desenvolvimento empresarial e tecnológico, promotores da cultura de inovação, da competitividade industrial, da capacitação empresarial e da promoção de sinergias em atividades de pesquisa científica, de desenvolvimento tecnológico e de inovação, entre empresas e uma ou mais ICTs (Instituto de Ciência e Tecnologia), com ou sem vínculo entre si”, tais ambientes claramente possuem uma enorme importância na transformação de linhas de pesquisa em novos negócios e inovação. O aumento no número de parques representa não apenas um interesse maior por parte dos envolvidos – governo federal, governos municipais e estaduais e iniciativa privada –, mas também a possibilidade de que novas soluções, produtos e serviços sejam criados.
Além de ambientes ou áreas de inovação, como é o caso dos parques tecnológicos, também ganham importância nesse contexto as incubadoras e aceleradoras, importantes apoiadoras na criação de novos negócios com base tecnológica e científica. Segundo uma pesquisa realizada entre 2018 e 2019 pela Anprotec (Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inovadores) em parceria com o MCTIC e o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), existem 363 incubadoras ativas no Brasil. Dessas, 121 foram entrevistadas para a pesquisa e atendem a diversos setores, sendo os principais relacionados a Tecnologia da Informação e Comunicação (TICs), Agronegócio, Ciências da Vida, Educação e Energia. As aceleradoras, por sua vez, somam um total de 57 no país.
As questões inerentes a cada um desses setores, claramente, diferenciam-se entre si, seja em relação ao preparo e maturidade dos cientistas e empreendedores, regulação imposta por órgãos superiores, adequação de processos, entre outras. Quando se trata do segmento de Saúde, o consenso é que grande parte dos pesquisadores – advindos de universidades, principalmente – possuem pouco conhecimento sobre questões relacionadas a negócios, fato e característica que atribuem maior importância a organizações que auxiliem no processo de transformação de uma pesquisa em inovação.
Sediado em São Paulo, o Cietec (Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia) é a entidade que gere a Incubadora de Empresas de Base tecnológica de São Paulo USP-Ipen e o principal pólo desse segmento na América Latina. Atualmente, o Centro possui aproximadamente 100 empresas incubadas, sendo 40 delas com foco em Hard Sciences no segmento de Saúde. De acordo com Sergio Risola, diretor executivo do Cietec, a instituição oferece diferentes tipos de suporte para a estruturação de um negócio e facilitação de um caminho repleto de questões burocráticas.
“O pesquisador que se interessa pelo Cietec é porque quer transformar a pesquisa em negócio. Boa parte dos profissionais dessa área querem saber e entender como fazer isso, como construir networking e como nós podemos facilitar isso. Nós oferecemos mentorias para projetos e startups, diagnosticamos os gargalos existentes, analisamos questões relacionadas à propriedade intelectual. Praticamente 100% das empresas do segmento de Saúde entram aqui para se preparar em busca de um primeiro recurso público, um fomento para o seu desenvolvimento. Além disso, o Cietec também auxilia startups em questões jurídicas, contábeis e fiscais, de como encaminhar bem a empresa nesse emaranhado de leis e regimes fiscal e tributário que são complexos no país”, conta Risola.
Ambientes como o Cietec são importantes também no movimento de aproximação entre empresa e universidade, união essa que foi incentivada e se ancora no Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação, sancionado em fevereiro de 2018, pelo então presidente da República, Michel Temer. A medida alterou nove Leis com o objetivo de “criar um ambiente mais favorável à pesquisa, desenvolvimento e inovação nas universidades, nos institutos públicos e nas empresas”, buscando auxiliar os setores acadêmico e empresarial a unirem esforços, incentivarem a pesquisa e diminuírem a burocracia existente no setor.
Conforme informações presentes no documento, a revisão do marco se tornou necessária pelo fato de o Brasil ter alcançado êxito na constituição de um sistema robusto de pesquisa e pós-graduação, o que resultou em avanços na formação de recursos humanos e ampliação da produção científica no país, mas que não refletiu em melhora de indicadores tecnológicos e de inovação nas empresas. Sendo o Brasil o 8º maior mercado de saúde no mundo, torna-se necessária, portanto, uma maior aproximação entre mercado e inovação tecnológica e científica.
Como já foi mostrado em outros estudos realizados pelo Liga Insights, a inovação corporativa – seja em processos, serviços e/ou produtos – não é necessária apenas para redução de custos ou para se estar à frente da concorrência, mas basicamente porque, de alguma forma, os consumidores criam essa demanda. Com mudanças substanciais e céleres nas formas de utilização de serviços e consumo de forma geral, os pacientes são, tal como os consumidores de outros mercados, mais exigentes e esperam por tratamentos que sejam cada vez mais personalizados.
Aos poucos, os principais players do segmento de saúde, como hospitais, laboratórios de exames diagnósticos e a corporações do setor farmacêutico já começam a se familiarizar com práticas e processos mais digitais e tecnológicos, já muito importantes para otimização de processos, redução de custos e, obviamente, a digitalização. E essa adaptação pode ser uma importante catalisadora para a introdução de tecnologias de base científica, seja em produtos ou serviços.
Realizado e divulgado em 2019 pela consultoria Deloitte, o estudo 2020 Global Health Care Outlook listou alguns dos principais desafios que seriam enfrentados pelo setor de healthcare neste ano, sendo um deles a necessidade de inovação no modelo de tratamento e cuidados com o paciente. Muitas das demandas claramente estariam envolvidas com questões relacionadas à conveniência e praticidade – ou seja, algo mais na linha de digitalização e otimização de processos inerentes aos tratamentos –, mas outras também se relacionam com o desenvolvimento de produtos e serviços mais personalizados, eficientes e rápidos.
Dentro desse contexto, emerge a procura por tecnologias como sensores aplicados a dispositivos wearables para monitoramento de pacientes, com algoritmos desenvolvidos para determinação de recomendação de tratamentos, somados a machine learning para reconhecimento de anormalidades. Parte digital, parte ciência.
Em uma leitura mais aprofundada deste estudo, percebe-se ainda, claramente, uma predominância da adoção de tecnologias e processos de inovação mais leves, incrementais, não radicais ou disruptivos. E mesmo que a disrupção não esteja tão distante assim, talvez demande uma ou duas décadas para que comece a acontecer. De qualquer forma, a previsão é de que as mudanças vão, de fato, ocorrer, e os primeiros a se movimentarem de forma efetiva podem se posicionar um ou mais passos à frente.
Conforme o estudo Six assumptions for measuring health disruption (Seis suposições para medir a disrupção na Saúde, traduzindo para o português), também realizado pela Deloitte em 2019, o consumidor – como está acontecendo também em grande parte de outros segmentos – estará no centro do sistema de Saúde, em um contexto de mudanças fundamentais para o setor que já ocorrem e devem se consolidar até 2040. Para esse ano, que parece longínquo, esperam-se três principais forças, que já se movimentam: o modo de consumo, a disponibilidade e uso de dados e a inovação científica.
Segundo análise presente no material da consultoria, o avanço em ritmo exponencial na inovação científica – como utilização de células-tronco, nanobots e outros – será possível baseado em insights derivados de uma robusta interoperação de dados, players que causem disrupção no mercado, transformação da estrutura de ensaios clínicos e maior participação dos pacientes.
Até os próximos sete anos, são esperados avanços no campo de pré-diagnóstico de doenças ligadas ao coração, diabetes e outras, permitindo a prevenção de outras doenças; além disso, espera-se um aumento do número de fármacos relacionados à terapia genética e celular aprovados pela FDA (Food and Drug Administration, agência reguladora estadunidense) e que 51% das pessoas já tenham utilizado testes caseiros para diagnóstico de infecção.
Em um segundo momento (entre 2027 e 2034), a previsão é que as terapias citadas anteriormente estarão sendo utilizadas para reparar genes ausentes ou não existentes – e representarão um terço do total de terapias, em sua grande maioria personalizáveis e escaláveis. Por fim, entre 2034 e 2040, a medicina personalizada conforme a composição genética e estilo de vida de uma pessoa pode estar disponível a custos acessíveis. Além disso, existe a expectativa de que inexistam praticamente doenças sem cura, com terapias celulares e genéticas também acessíveis.
Enxergando tais perspectivas de futuro e tendências que aos poucos começam a ser vistas como realidade, algumas startups já estão criando soluções classificadas como parte do futuro da medicina e da saúde. Claramente, muitas dessas soluções ainda estão em desenvolvimento e, como analisado pelo estudo da Deloitte, são vistas como possíveis em uma perspectiva de longo prazo, tanto pelas características de produção quanto por questões burocráticas e de regulação.
Uma delas é a Kriya Therapeutics, startup com sede na Califórnia (EUA), com foco no design e desenvolvimento de novos e transformadores tratamentos para doenças crônicas severas, por meio de terapia genética. O foco atual da startup se concentra em doenças cuja parte biológica já é bem compreendida. Isso porque, segundo Shankar Ramaswamy, CEO e cofundador da empresa, existem muitos casos de terapia genética bem sucedidos, mas com foco em doenças monogênicas – causadas pela alteração ou mutação de um gene sozinho na sequência de DNA – raras, e o objetivo seria justamente possibilitar a aplicação de terapia genética em doenças predominantes. Em maio de 2020, a Kriya captou US$ 80 milhões em uma rodada de Series A, para avançar no desenvolvimento de soluções para doenças como diabetes tipo 1 e tipo 2 e obesidade severa.
A In Situ Terapia Celular é um exemplo de startup brasileira de base tecnológica e científica cuja solução é focada em terapia celular. Atualmente, a empresa possui dois produtos: o primeiro, já desenvolvido – e em fase de ensaio clínico para posterior registro junto à Anvisa –, trata-se de um biocurativo que contém células-tronco, produzido em uma bioimpressora 3D, para o tratamento de feridas crônicas e queimaduras graves. O segundo, em fase de pesquisa, é um creme de aplicação tópica com moléculas bioativas produzidas também por células-tronco, que pode ser utilizado como complemento ao tratamento do biocurativo.
Apesar de ser um segmento ainda inicial no país, o desenvolvimento de soluções por parte da In Situ é um demonstrativo interessante de evolução do ecossistema. De acordo com Carolina Caliari, fundadora e CEO da startup, incubadoras e parques tecnológicos têm um papel fundamental para que o segmento cresça. “Esses ambientes são muito importantes na transição de negócios em Hard Sciences. Como a maioria nasce dentro de universidades, parques e incubadoras contribuem imensamente para a transição do mundo acadêmico para o mundo de negócios, oferecendo capacitação e interações fundamentais para o desenvolvimento de soluções”, afirma.
Ainda conforme Caliari, as corporações – grandes hospitais, no caso – também representaram um elo importante para a In Situ, possibilitando parcerias para teste de modelo de negócios. Segundo ela, as empresas se mostram, aos poucos, mais abertas e interessadas em soluções inovadoras e têm atuado de forma colaborativa.
Para que casos como os citados sejam mais numerosos e obtenham sucesso, é necessário, claro, que as portas do mercado estejam de fato abertas às universidades e à inovação, e não apenas à incremental, mas também à disruptiva. Dentro desse contexto, práticas relacionadas à transformação digital, investimentos em PD&I e inovação aberta podem ser caminhos a serem escolhidos. A Eurofarma, multinacional brasileira do segmento farmacêutico – considerada uma das empresas mais inovadoras do Brasil –, tem criado iniciativas para se aproximar não só do ecossistema de startups brasileiro, mas também de projetos de pesquisa potencialmente inovadores, originários na Academia.
Segundo Paulo Braga, Head de Corporate Venture da Eurofarma, investir em P&D de inovação incremental e radical tem sido cada vez mais uma realidade, e parte do lucro líquido da companhia já é focado para essas iniciativas.
“Nossos avanços são tanto em inovação científica quanto em tecnológica, pensando no usuário da ponta, em oferecer melhores benefícios. Pensando nisso, nós investimos em inovação aberta, um olhar mais vertical, trabalhar com startups para ter resultados na companhia como um todo. Além disso, também patrocinamos pela área de P&D um programa com foco na academia, em conjunto com a EMERGE – empresa que aproxima a indústria a universidades e centros de pesquisa para impulsionar a inovação científica nas organizações –, buscando cientistas que querem empreender com seus estudos e tirar a inovação do papel”, conta Braga.
A beone technologies é uma startup de biotecnologia que desenvolveu uma solução para tratamento do pé diabético – condição que afeta mais de 100 milhões de pessoas no mundo – por meio da fotobiomodulação, com ação cicatrizante, analgésica, anti-inflamatória, bactericida e bacteriostática.
A Hi Technologies criou um dispositivo que realiza uma série de exames em qualquer estabelecimento que conte com a solução, disponibilizando o resultado em poucos minutos. O Hilab possibilita a realização de exames bioquímicos, hormonais, além da detecção de doenças infectocontagiosas.
Fundada em 2017, a ISLA Pharmaceuticals é startup uma porto-riquenha, que tem desenvolvido medicamentos e tratamento para doenças tropicais, como a dengue e outras enfermidades transmitidas por picada de mosquito. Com sede em San Juan, a empresa já captou US$ 1,7 milhão em investimentos.
A Nautilus é uma startup de São Francisco que desenvolveu uma plataforma para analisar e quantificar o proteoma humano, possibilitando a aceleração de desenvolvimento de fármacos e a otimização de diagnósticos médicos. Fundada em 2016, já captou mais de US$ 75 milhões em investimentos.